Donald Trump deve ter respirado aliviado quando o ex-premiê canadense, Justin Trudeau, deixou o cargo nesta semana. De todos os líderes mundiais para quem o magnata republicano tenta empurrar goela abaixo sua doutrina da "gatunagem geopolítica", Trudeau foi o primeiro a perceber quais eram os interesses do presidente americano.
Era fim de novembro, e Trump mal tinha ganhado a eleição de Kamala Harris, quando Trudeau fez uma apressada visita a Mar-a-Lago, o quartel general informal da cúpula trumpista. O líder canadense estava com a popularidade em baixa, pressionado pelo aumento do custo de vida no país. Àquela altura, o então presidente eleito prometia impor tarifas de 25% as produtos importados do Canadá e do México.
Trudeau viu na ameaça um risco e uma oportunidade. As tarifas poderiam agravar ainda mais o já combalido cenário econômico canadense, mas um afago a Trump, com quem ele já havia trabalhado diplomaticamente entre 2017 e 2021 para renegociar o Nafta com sucesso, poderia impulsionar algo diferente para o restante do mandato.
Mas mesmo após a renegociação do Nafta, Trump dizia que o Canadá ainda levava vantagens injustas sobre os EUA e mentiu ao dizer que o vizinho do norte inundava os EUA com o tráfico de fentanil ( as apreensões da droga vindas do Canadá respondem a 1% do total).
O premiê canadense disse que uma tarifa daquele tamanho arruinaria a economia canadense. Trump respondeu que, naquele cenário, era melhor que o Canadá se tornasse o 51º Estado americano.
Trudeau riu. Mas foi de nervoso.
E então as coisas azedaram.
Da piada à ameaça
Em casa, Trudeau viu o governo colapsar ainda em dezembro. Ele perdeu a liderança do Partido Liberal, o que colocou em ação seu processo sucessório, com vista a realização de eleições neste ano. O líder da oposição, Pierre Poilievre, uma espécie de Trump canadense, era então o grande favorito.
Entre o encontro de Mar-a-Lago e a posse, Trump passou a externar publicamente a ideia de anexar o Canadá. Ele inclusive passou a chamar Trudeau de "governador". O que parecia uma piada ficou ainda mais insólito quando o presidente eleito começou a cogitar, ainda antes da posse, a compra da Groenlândia da Dinamarca e a retomada do Canal do Panamá. Afinal, a ideia parecia tão obsoleta que pouca gente levou a sério. Era Trump sendo Trump.
Ao assumir o mandato, Trump mencionou no discurso de posse que retomaria o Canadá. Com dez dias no cargo, em 1º de fevereiro, ele cumpriu a promessa e anunciou tarifas de 25% sobre produtos do Canadá e do México.
Seriedade
Uma semana depois disso, caiu a ficha de Trudeau.
Em um encontro com empresários canadenses, logo após Trump falar em usar pressão econômica para forçar a anexação do Canadá, e dizer que a fronteira entre os dois países é "artificial", Trudeau compartilhou seu temor de que o vizinho do sul estava falando sério.
"Eles estão muito cientes de nossos recursos, do que temos e querem muito se beneficiar deles", disse Trudeau. "Mas Trump tem em mente que uma das maneiras mais fáceis de fazer isso é absorver nosso país. E isso é uma coisa real."
De lá para cá, a situação só piorou.
Após uma breve calmaria resultada do acordo para impedir as tarifas e fortalecer o combate ao narcotráfico na fronteira (que é quase inexistente), a temperatura voltou a subir.
Nacionalismo econômico
Os canadenses começaram a boicotar abertamente os produtos importados dos EUA. As ameaças de Trump, que antes eram manifestadas em privado, tornaram-se públicas, e passaram a ser feitas por outros membros do governo, como o secretário de comércio, Howard Lutnick.
Até o hóquei no gelo virou tema de briga, quando o hino americano foi vaiado em um jogo entre Canadá e Estados Unidos em meados de fevereiro.
Quando Trump voltou a impor tarifas ao Canadá, na semana do carnaval, Trudeau foi mais aberto em relação a ameaça de anexação. "Trump planeja um colapso total da economia canadense porque isso facilitará a nossa anexação", disse ele. "Isso nunca vai acontecer. Nunca seremos o 51º Estado."
Trudeau deixou o cargo nesta semana. Será substituído pelo tecnocrata Mark Carney. Sua receita para lidar com o novo Trump — que, como um valentão do recreio da quinta série ,acha que pode ameaçar qualquer um para conseguir o que quer — fica de exemplo.
O tempo para tentar convencer o presidente por meio de afagos e elogios passou. Os EUA não veem mais seus antigos aliados como parceiros de negociação, mas como inimigos.
Neste novo mundo, Trump quer retomar o velho imperialismo do século 19 e criar não só uma zona de influência sobre as Américas, mas, no limite, expandir territorialmente os Estados Unidos em busca de recursos naturais e segurança estratégica. O plano não é original. Putin faz isso na Ucrânia. Um pintor frustrado dos anos 30 executou um plano similar na Europa Central.
Tudo que Trump disse que ia fazer na campanha, por mais insólito que pudesse parecer, está acontecendo: as tarifas, a expulsão de imigrantes, a militarização de fronteira e os cortes no governo. Por mais que ele seja um notável mentiroso, não é mais hora de levar sua conversa de expandir o território americano na brincadeira, seja alvo o Canadá, o Panamá, ou a Groenlândia.
É hora de Emmanuel Macron, Keir Starmer e Friedrich Merz começarem a falar grosso e agir.
Fonte: Mundo